A Mulher Faz o Homem e a fé inabalável no homem comum
Francesco Rosario “Frank” Capra tornou-se um diretor conhecido como “o nome acima do título”, tamanha a notoriedade do seu estilo. Seu sarcástico Aconteceu Naquela Noite (1934) foi o primeiro vencedor do Big Five do Oscar (Filme, Diretor, Roteiro, Ator e Atriz) e foi uma das primeiras screwball comedies.
Talvez seu maior legado seja o esperançoso clássico natalino A Felicidade Não Se Compra (1946). Mas engana-se quem pensa que este diretor de comédia e filmes sentimentais fosse dono de um cinema “inofensivo”. À sua maneira, com seus diálogos espirituosos, casais icônicos e cenas memoráveis, muito baseadas em improviso, Capra também foi um questionador como poucos do país para onde se mudou com a família aos seis anos. E a maior prova disso é A Mulher Faz o Homem (1939).
Não foi nem o primeiro nem o último do dos seus mistos de comédias românticas, drama e comentário social. Frank Capra escreveu uma espécie de trilogia sobre o homem ordinário da América. O primeiro foi O Galante Mr. Deeds (1936) e o último, Adorável Vagabundo (1941). Todos os filmes trazem em seu título original o nome do protagonista junto a alguma ação — Mr. Deeds Goes To Town (em português, “Sr. Deeds vai para a cidade”), Meet John Doe (“Conheça o Zé Ninguém”) e Mr. Smith Goes To Washington (“Sr. Smith Vai Para Washington”).
Até a premissa é parecida: um homem simples tem sua vida mudada por algum evento e seu misto de ingenuidade com valores inabaláveis acaba conquistando não só o amor mas também a admiração de uma mulher desencantada.
Em cada um desses filmes, Capra empresta seu olhar arguto a um pilar da sociedade americana. No primeiro filme, com Gary Cooper e Jean Arthur, o alvo principal era a elite — no caso, a família endinheirada que faz pouco caso do protagonista. No terceiro, com Cooper e Barbra Stanwyck, o alvo é o jornalismo, que alça uma farsa ao posto de herói — o que indigna o próprio farsante.
Controverso, A Mulher Faz o Homem tinha como alvo principal a política.

Um sujeito simples
Bobo e estúpido. Faz o Senado parecer um bando de corruptos.
– Senador Alben W. Barkley após ver A Mulher Faz o Homem
Tanto era a obsessão temática que Jean Arthur voltou para este novo filme, que seria uma sequência de Deeds caso não fosse o empecilho de Gary Cooper estar ocupado à época. Então pensou-se em James Stewart, com quem já tinha trabalhado em Do Mundo Nada Se Leva: “Eu sabia que ele seria um grande Mr. Smith… Ele parecia com o garoto do campo, o idealista. Era muito perto dele”.
Esse herói americano por excelência — o homem que acreditava sem cinismo no mito americano, ou ao menos na realidade factual, e era contestado por isso, foi uma plataforma para outros diretores comentarem a América. Foi com ele, Cary Grant e Katharine Hepburn que George Cukor fez uma provocação à instituição do casamento com Núpcias de um Escândalo (1940); que Hitchcock viu lugar para desafiar os limites da moral em suspenses psicológicos como Festim Diabólico (1948), Janela Indiscreta (1954) e Um Corpo que Cai (1958); e com quem John Ford eternizou o faroeste como construção em O Homem Que Matou o Facínora (1962).
A Mulher Faz o Homem é todo sobre isso; trata-se afinal da impressão de uma América construída e a existência de uma América de fato. Após a morte um senador, o governador Hubert Hopper tem de escolher seu substituto. O milionário que o controla, Jim Taylor, quer que ele coloque um testa-de-ferro, enquanto os comitês políticos pedem por um reformista.
Após uma jogada de cara-ou-coroa, resolve acatar a sugestão dos filhos: Jefferson Smith, o chefe dos Escoteiros Mirins (Stewart). Um homem tão pueril em sua paixão pela democracia americana que até a maneira como foi batizado expressa isso – é um nome especialmente comum nos EUA. Mais ou menos como alguém se chamar Jefferson Silva em terras brasileiras.

Smith desafia o governo
Smith aceita; sua natureza dócil e ingênua é aliciada por Joseph Paine (Claude Rains), um senador corrupto que era amigo de seu pai. O protagonista é então guiado nos meandros da política por sua secretária, Clarissa Saunders (Jean Arthur), que trabalhava com o antecessor de Smith e hoje é uma mulher desiludida, sem ilusões a respeito da vida nem da política. Ela lida de maneira cínica com a chegada do novo senador, até o grande catalisador do filme: o projeto de Jefferson Smith.
O sistema parece uma serpente que devora a própria cauda no filme de Capra, que mostra na primeira metade do seu filme dois pilares em rota de colisão: convencido a legislar, Smith cria um projeto de arrendamento para os escoteiros da América poderem ter um campo só seu, onde poderão ‘aprender valores”. Porém, um problema: o local proposto já estava na mira de Jim Taylor, que pretendia usar a construção de uma barragem como parte de um esquema de suborno.
Tratado com desprezo, Smith agora conhecerá uma nova camada do poderio de Taylor: a difamação. Uma vez que o terreno arrendado seria pago pelos próprios escoteiros, o inocente homem pego para Senador é acusado de tentar lavar dinheiro dos infantes. Paine, antes balançado, é quem arma a acusação e arquiteta para que Smith seja expulso através da votação
O título brasileiro então assume dupla conotação: Saunders, a mulher que fez Jefferson Smith, puxando as cordas do interiorano quando solicitada, é de alguma forma tocada pelo seu idealismo e organiza uma reação: uma obstrução. Dentro do direito constituído ao Senador, enquanto Smith tiver a palavra e não se sentar, ele pode continuar a se defender.

No que acreditar?
Isso não é lugar para você. Você é decente. Você não pertence a esse lugar!
– Clarissa Saunders
Quando começa o cerne dramático de A Mulher faz o Homem, o que veremos é uma via crucis: Jefferson Smith fala sem parar por 25 horas seguidas, contando de início apenas com a personagem de Arthur. E após passar um bom tempo como uma sátira farsesca, onde um homem é feito de bobo para o povo e para a mídia, o filme se torna um melodrama.
Sim, pois após nos distanciarmos da caricatura que pretende questionar valores, com o bobo de Stewart fazendo as funções de palhaço triste e atrapalhado, esse mesmo pretenderá resistir. Dentro desse segundo registro assumido pelo filme, teremos a dramaticidade sendo usada com intenção de denúncia, uma função social do gênero que Bargainnier (1980) descreve como sendo de conectar nossas emoções à representação de um mundo ideal de certeza e justiça.
Do povo, pelo povo, para o povo

A cena em que há uma reconciliação entre os ideais abalados de Smith e os renovados de Clarissa é emblemática: “Jeff” vai visitar o Lincoln Memorial, onde os capitólios romanos apequenam o homem e agigantam a estátua do presidente Abraham Lincoln. Toda a luz providenciada pela cena é externa. O homem comum americano está em frente ao Olimpo de seu país, engolido pela sombra, até que a personagem de Arthur o lembra que a única saída de uma crise política é pela política.
Dessa forma, A Mulher faz o Homem trata de um personagem inocente, mas não é um filme inocente. O manto de inocência desafiada pelo cinismo e pela corrupção é usado como um grande comentário de Frank Capra, que cutuca a realpolitik americana. Os ditos de Lincoln durante o discurso de Gettysburg prenunciavam que um governo “para, por e do povo” jamais “desapareceria da Terra”. Esses eram os ideais de Mr. Smith até ir a Washington, onde conhece a banda podre da política.
No Senado, as palavras de Lincoln parecem belas, mas falsas: aqui retrata-se um sistema político que pareceu esquecer de seus cidadãos —seja na figura de uma funcionária que perdeu a paixão, como Clarissa, ou um político, como Joseph Paine que carrega a culpa de servir a dois senhores (o público e o privado) e os malefícios que isso causa à população no geral, usada como massa de manobra por um corrupto poderoso.

A inocência redentora
E este país é maior do que os Taylors, ou você, ou eu, ou qualquer outra coisa. Grandes princípios não se perdem quando vêm à luz; eles estão bem aqui! Você apenas tem que vê-los novamente.
– Jefferson Smith
Stewart, em tour-de-force, também entrega a atuação da uma vida: se de início empresta-se muito da farsa da comédia visual – ele é tão inocente e aparvalhado que sempre se atrapalha com objetos cênicos quando conversa com a bela filha do senador Paine, quando se conecta na política e na parceria com Saunders, é firme, decidido, falando esgotado aos berros.
O estoicismo de Jefferson Smith é muito representada através da sua degradação física. Desesperado em provar sua inocência, a barba cresce, o cabelo desalinha, o terno amarrota, as olheiras são pronunciadas — mas como Frank Capra filma um personagem idealista e ideal, ele morrerá antes de ceder às maquinações.
Uma sinergia bastante emocional entre diretor e ator — Capra era conhecido por apenas escrever as cenas mestras de suas obras e ir compondo a partir daí, dispensando maquinaria que “distraísse a audiência” e “concentrando-se o tempo todo nos atores”. Perceptível que, uma vez abandonado o terreno da comédia, o filme, quando entre no discursivo terço final, abandone a celeridade dos cortes, que imprimia a comicidade do início e seu desfile de bizarrices. A obra se torna mais espaçada, a câmera engrandece o protagonista e esmaga seus antagonistas através do posicionamento de câmera.
Levado ao limite por ator e diretor, Jefferson Smith passa, então, a ser um Cristo da democracia, sacrificado para libertar seu país de homens que não mais o representam.

As políticas de Frank Capra
O teórico Richard Griffith descreve como o tema principal de Frank Capra “um inocente messiânico se coloca contra as forças da cobiça entrincheirada. Sua inexperiência o põe em desvantagem, mas sua galante integridade em face da tentação chama à boa vontade do “povo comum” e através do seu protesto combinado, ele triunfa”. Era a ambição de Capra — o triunfo do povo sobre o que o oprime.
Talvez por isso, em uma nota histórica um elemento temático que levou a filósofa conservadora Ayn Raynd a denunciar A Felicidade Não Se Compra como “propaganda comunista” para o FBI. A polemista autora pareceu mal perceber que o diretor, à maneira de John Ford em obras como As Vinhas da Ira (1940), expressava a voz do povo como a voz essencialmente americana. O cinema de Capra deposita sua fé em um país moldado não através do dinheiro, mas através da expressão da vontade popular.
Nesse sentido, pode-se dizer que A Mulher Faz o Homem é um filme que deposita uma fé crítica no país — certo, os ricos, políticos e a mídia compraram tudo, mas enquanto o povo comum existir, há esperança e motivo para lutar. E com a nota final do filme, tudo parece se resumir a essa simples maneira: o heroísmo da luta por ideais é excruciante e inglório; mas parece a única maneira de combater os poderosos e libertar o mundo de suas garras.
Com a energia inocente de Smith, a consciência culpada de Paine e o cinismo pragmático de Saunders, poucos filmes parecem reter a mesma fé no homem que este clássico de Frank Capra.
Obras citadas:
Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night, 1934), A Felicidade Não Se Compra (It’s a Wonderful Life, 1946), A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith Goes to Washington, 1939), O Galante Mr. Deeds (Mr. Deeds Goes To Town, 1936), Adorável Vagabundo (Meet John Doe, 1941), Do Mundo Nada Se Leva (You Can’t Take It With You, 1938), Frank Capra; Núpcias de Escândalo (The Philadelphia Story, 1940), George Cukor; Festim Diabólico (Rope, 1948), Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), Alfred Hitchcock; O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance,1962), As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, 1940), John Ford.